O ano era 1954 e o Brasil, pela primeira vez na história, teria de disputar uma Eliminatória para disputar a Copa do Mundo. Em 1930, a Fifa convidou os países, enquanto que em 1934 e 1938, a Seleção se classificou automaticamente após a desistência de Peru e Argentina, respectivamente.

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O time comandado por Zezé Moreira tinha a difícil missão de ficar com a única vaga destinada ao continente. Teria pela frente Peru, Paraguai e Chile – a Argentina decidiu não disputar já que seus principais jogadores haviam debandado para a liga pirata da Colômbia e, portanto, não poderia utilizá-los em competições da Fifa. O Uruguai, atual campeão já estava classificado. Em cima da hora, a federação peruana jogou a toalha, alegando falta de recursos financeiros. Restou então encarar paraguaios e chilenos em turno e returno, num calendário espremido entre 14 de fevereiro e 14 de março de 1954.

Uma formação do Torres Homem do início dos anos 1950: time era um dos mais fortes no Departamento Autônomo – Reprodução/O Jornal

Zezé convocou 27 jogadores para iniciar os trabalhos no início de fevereiro, com treinos nas Laranjeiras e São Januário. O Maracanã seria usado apenas nos dias que antecederiam os jogos. Para evitar possíveis lesões de seus comandados, Zezé pediu a CBD que usasse times fracos durante a preparação.

Como também era técnico do Fluminense, usou o time de juvenis para servir de sparring. Mas também solicitou à Confederação Brasileira de Desportos (CBD) que convidasse outra equipe. O Departamento Autônomo da Federação Metropolitana de Futebol (FMF) do Rio de Janeiro indicou o time do Torres Homem F.C. O Departamento Autônomo nada mais era do que a entidade que regulamentava o campeonato de amadores da cidade, já que eram centenas de clubes inscritos e não havia ainda a segunda divisão no futebol profissional.

Mas, afinal, que time era esse?

O Torres Homem era um time amador do bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio, e que era uma das forças do Departamento Autônomo. Era o vice-campeão de 1953 (perdeu a decisão para o Campo Grande) e havia conquistado recentemente o Torneio Início de 1954. Não era uma potência, longe disso. Mas, entre os seus pares, impunha respeito. E ainda carregava um apelido de tom pejorativo, dado pelos seus adversários: O Time do Hospício.

No dia 11 de maio de 1917, estudantes de Medicina que faziam residência no Hospital Nacional dos Alienados – fundado então em 1852 pelo imperador Pedro II –, onde funciona atualmente o Palácio Universitário da UFRJ, resolveram montar, com o reforço de funcionários da instituição, um time de futebol.

O batismo, no entanto, só veio em novembro de 1918, quando um dos alunos resolveu prestar uma homenagem a um dos médicos que havia contribuído para a fundação do hospital: João Vicente Torres Homem. Tanto é que um dos pavilhões do hospital levava seu nome já naquela época. O time manteve suas atividades esportivas até o fim de 1930, quando, por desavenças internas, saiu de campo.

Passados dez anos, em 16 de outubro de 1940, os funcionários da instituição, que chamava-se à esta altura Serviço Nacional de Doenças Mentais, resolveram ressuscitar o Torres Homem. E desta vez foi para valer. Tanto é que o campo que existia dentro do hospital passou por reformas, ganhou uma pequena arquibancada de madeira, e foi inaugurado em 1941. Neste mesmo ano o time pediu filiação ao Departamento Autônomo da FMF.

De volta a 1954, a Seleção Brasileira tinha as Eliminatórias pela frente. E a classificação era mais do que obrigação para uma equipe que ainda sofria com o fantasma de 1950. Era uma nova era. A das camisas amarelas. A branca já fazia parte de um passado que ninguém gostaria de visitar. Antes de embarcar para o exterior – jogo contra o Chile, em 28 de fevereiro, e Paraguai, em 7 de março – , Zezé Moreira colocou a Seleção para fazer dois jogos-treino em São Januário: duas goleadas modestas de 5 a 0 nos dias 10 e 12 de fevereiro.

Torres Homem sofreu na mão da Seleção Brasileira nos preparativos para a Copa de 1954 – Reprodução/O Jornal

Em Santiago, vitória apertada por 2 a 0 sobre o Chile, com dois gols de Baltazar. Em Assunção, vitória pelo placar mínimo sobre os paraguaios, graças a mais um gol de Baltazar. Na volta ao Brasil, Zezé continuou com a parceria do Torres Homem. No jogo-treino do dia 10 de março, no Maracanã, uma vitória de 17 a 1 que acendeu o sinal amarelo e que foi a deixa para a imprensa destilar críticas ao trabalho da comissão técnica, entremeadas por doses de deboche.

“O Torres Homem está pleiteando uma excursão para a Europa. Até porque está ensinando o ataque da nossa Seleção a marcar gols”, escreveu um colunista do jornal ‘Diário Carioca’. Dois dias depois, outro treino e um triunfo modesto: apenas 5 a 0. Naquela altura, o sarcasmo era inevitável. O que um time amador poderia servir na preparação para uma Copa?

‘Vai, Bolão!’

No dia 14 de março, vitória por 1 a 0 sobre o Chile que praticamente garantiu a classificação. Faltava, porém, vencer os paraguaios. Uma derrota e estaríamos fora da Copa. E lá foi a nossa Seleção fazer mais dois jogos-treino com o bravo Torres Homem: 3 a 1 e 6 a 0 nos dias 17 e 19. A intimidade entre os jogadores dos dois times já havia aflorado. Sobrava intimidade.

Tanto é que em algumas vezes, Zezé colocava um dos jogadores do Torres Homem para completar a Seleção em determinada atividade. Numa atividade com jogadores apenas da Seleção, Zezé chamou o ponta-esquerda Bolão, do Torres Homem, para completar a equipe de reservas. Bolão era um sujeito baixinho, atarracado, de pernas curtas. Foi dele um dos dois gols que o Torres Homem marcara na Seleção.

Para testar a habilidade de bolão, o meia Pinga, do Vasco, o acionava com passes profundos na linha de fundo, sempre incentivando-o. “Corre, Bolão!”, “Boa, Bolão!”, “Isso aí, garoto!”, bradavam os rapazes da Seleção. Bolão, de acordo com uma reportagem de ‘O Jornal’, deu três piques, mas sucumbiu no quarto, estatelado no gramado do Maracanã, sob o escorchante sol do verão carioca.

Bolão, ponta-esquerda do Torres Homem, ao lado do goleiro Osvaldo Baliza, da Seleção – Reprodução/O Jornal

Como forma de recompensa, a CBD programou para a preliminar de Brasil x Paraguai, no dia 21 de março, um jogo entre o Torres Homem e uma formação mista do Botafogo. Mais de 120 mil pessoas gritaram no Maracanã o nome do time azul e branco. Que saiu de campo ovacionado depois de uma goleada por 4 a 1. O ápice que time de pelada algum no mundo poderia imaginar. Inspirado no Torres Homem, o Brasil repetiu o placar diante do Paraguai e, assim, estava na Copa. Ajudado, claro, pelo Time do Hospício.

O Brasil de Zezé Moreira seguiu para a Suíça, onde cairia nas quartas de final para a Hungria. Os jornalistas questionavam a nossa preparação. Como um time que pensa em ser campeão do mundo se prepara diante de um bando de amadores? A Hungria, nos amistosos preparatórios, tinha dado surras na Inglaterra (duas vezes) e na Áustria. Do outro lado da história, o Torres Homem pegava carona no sucesso repentino. Duas excursões para São Paulo. Contra o Comercial, da capital paulista, fez um amistoso que foi televisionado. Pena. Derrota por 6 a 2.

O anagrama bordado que servia de escudo nas camisas azuis e brancas do Torres Homem- Reprodução

A loucura perdeu fôlego

O Torres Homem continuou seu caminho no Departamento Autônomo. Era um campeonato duro de se jogar. Com mais de 30 times divididos por três zonas geográficas. Mandou algum de seus jogos no estádio do Botafogo, em General Severiano. O público queria ver em ação aqueles audazes jogadores que um dia desafiaram a Seleção Brasileira. Tinha virado um simpático time de bairro, com direito a foto no jornal no dia seguinte.

Mas a loucura que envolvia o Torres Homem acabou tão logo. O time disputou o Campeonato de Amadores do Departamento Autônomo até 1955, quando se envolveu em disputas internas na FMF. Foi relegado à categoria de clubes independentes, ou seja, que não são filiados a alguma entidade e entrava em campo esporadicamente, geralmente contra equipes da Zona Norte ou Oeste. A distância percorrida neste deslocamento era mais um duro adversário. Aos poucos, o fôlego foi acabando.

Fez seu último jogo em 1960.

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